A perspectiva da Geopolítica do Capitalismo para David Harvey

A PERSPECTIVA DA GEOPOLÍTICA DO CAPITALISMO PARA DAVID HARVEY

THE PERSPECTIVE OF THE GEOPOLITICS OF CAPITALISM BY DAVID HARVEY

Raimundo Jucier Sousa de Assis*




1 Introdução

A leitura abrangente dos textos de Marx por David Harvey, como mesmo admite o autor, nunca foi realizada com as lentes de que Marx era um imprimatur da verdade absoluta. Dentre as ideias inacabadas, compreendeu Harvey (2005, p. 13) que "ainda Marx tivesse prometido um volume de O capital dedicado à formação do Estado e ao mercado mundial, nunca concluiu seu projeto". E entre os clássicos do marxismo, Harvey (2005, p. 13) também percebeu que "havia bem poucos textos sobre a geografia da acumulação de capital e sobre a produção desigual do espaço e de desenvolvimento geográfico". Dessa maneira, o autor percorreu grande parcela da sua travessia, na geografia estadunidense, mapeando as contribuições e as lacunas que Marx e outros teóricos marxistas haviam deixado, entre elas, sobre o mercado mundial, o Estado e sua relação com o espaço geográfico. Desenvolveu, nessa jornada, o que consideramos uma parcela da renovação do materialismo histórico, constituindo, entre as suas contribuições, uma perspectiva singular para pensar a geopolítica do capitalismo.

Tratamos como uma perspectiva singular por duas questões: primeiro, a expressão geopolítica do capitalismo não é utilizada apenas por Harvey, pois outros autores, como José Luis Fiori (2014, p. 15-49) e alguns de seus comentadores, pensaram com base nesse termo e produziram um arcabouço teórico bem distinto (FARIAS, 2015). Segundo, mesmo que existam outras expressões usadas, inclusive pelo próprio Harvey, como "geografia da acumulação de capital", "geografia histórica do capitalismo"; "ajuste espacial"; "desenvolvimento geográfico desigual", "imperialismo capitalista", entre outros, a locução "geopolítica do capitalismo" evidencia um momento de síntese do autor que resume o exercício teórico e metodológico das suas principais publicações clássicas para pensar as dinâmicas entre os Estados, os territórios e o mercado mundial. Assim, foram aqui escolhidas para a análise a coletânea intitulada Spaces of capital (Espaços do capital) (HARVEY, 2007), publicada em 2001, em destaque, os capítulos escritos de 1975 a 19811; e a obra The limits of capital (Os limites do capital), que veio a público em 1982, sendo esses materiais cotejados com outras publicações no limiar do século XXI, como o livro Spaces of hope (Espaços de esperanças), de 2000 (HARVEY, 2013).

A unidade da ideia "geopolítica do capitalismo" aparece, pela primeira vez, no texto publicado em 1981 (HARVEY, 2013). Mesmo formalmente datado um ano antes da principal publicação da obra de Harvey, isto é, os Limites do capital (1982), aquele texto reúne uma abreviação e citações diretas dessa obra como um livro finalizado. A geopolítica do capitalismo conforma uma proposição-síntese capaz de revelar como a produção hegemônica das geografias materiais nos centros e nas periferias do capitalismo está associada à acumulação e à tendência congênita da sobreacumulação de excedentes de capital e de trabalho. Dessa forma, o mapeamento das produções e das destruições das geografias, além de toda a mobilidade da força de trabalho, servem de evidências empíricas para as investigações que entendem esses dois excedentes como impulsionadores das relações e das confrontações geopolíticas entre os Estados nacionais e os agentes privados ligados às expansões geográficas, sobretudo em tempos de depressão econômica.

2 A leitura das contradições internas do capitalismo

A história de Harvey na constituição da sua teoria geopolítica pode ser lida como a de um cientista fora da moda intelectual. Harvey adere ao marxismo no momento em que ler Marx já não era uma das tendências, por muitas situações, ditas libertadoras. E, de 1970 a 1980, já percebia que ler Marx não representava nem atividade política nem acadêmica para a maioria dos intelectuais que aderiram à "virada cultural" nas ciências humanas. Mesmo assim, comenta o autor que enfrentou com os estudantes e por conta própria um ato de ler Marx como "um cego conduzindo outro cego", sendo esse processo o caminho que lhe permitiria, mais à frente, tornar o seu percurso, considerado por muitos como anacrônico e ultrapassado, em uma das linhas mais fortes da reinvenção da geografia na contribuição dos estudos contemporâneos2.

Em um dos textos que conta sua travessia de estudos da obra de Marx, Harvey (2004, p. 17-18) assinala:

Mesmo antes do colapso do Muro de Berlim, no começo dos anos de 1980, Marx estava definitivamente saindo da moda política e acadêmica. Nos prósperos anos da política de identidade e da famosa virada cultural, a tradição marxiana assumiu um importante papel negativo. Foi considerada ritualística e (incorretamente) uma ideologia dominante a ser combatida. Ele e o marxismo "tradicional" foram criticados e [desqualificados] de maneira sistemática como tendo pouca preocupação com importantes questões de gênero, de raça, de sexualidade, de desejos humanos, de religião, de etnia, de dominações coloniais, de ambiente ou do que mais se quis.

O que marca o nosso período, interpreta Harvey, é uma mudança discursiva que predomina nas últimas três décadas na hegemonia nas ciências humanas. Sustentam essas narrativas que "um dia, houve o estruturalismo, modernismo, industrialismo, marxismo e de que se tem agora pós-estruturalismo, pós-modernismo, pós-industrialismo, pós-marxismo, pós-colonialismo e assim por diante" (HARVEY, 2004, p. 25). Na compreensão do autor, esses movimentos produziram um afastamento e uma desconfiança com "as categorias de compreensão do mundo antes estabelecidas", desconectando um conjunto de relações que envolviam o corpo, os grupos, as classes e os territórios com a dinâmica mais objetiva da realidade. A esfera do indivíduo foi contraposta à esfera do globo e o pós-modernismo foi deslocando o vocabulário de análise do capitalismo, tornando o corpo, a subjetividade e outros enigmas psíquicos em esferas de investigações apartados das dinâmicas e das categorias objetivas do mundo.

Entre suas conclusões, adverte Harvey (2004, p. 27) sobre as avaliações que resultaram de uma geração lendo e compreendendo Marx: "apartar-nos de Marx é cortar nosso nariz investigativo a fim de satisfazer à face superficial da moda intelectual contemporânea". Marx, dessa maneira, torna-se o "bloco teórico" central da sua obra, sendo com base nele que o autor conseguiu "friccionar outros intelectuais" e fazer seu fogo abstrato e investigativo próprio para pensar a realidade. Marx é assim o ponto de partida que tem permanência nos textos de Harvey que analisamos, logo, dos extratos que realizou dessa leitura, sendo necessário à compreensão da exposição de alguns elementos centrais que o autor agrega de Marx à sua obra. Entre eles, cabe destacar a seguir que a elaboração da teoria da geopolítica de Harvey tem como núcleo o entendimento e a análise das contradições internas do capitalismo pensadas por Marx. Isto é, implica a compreensão de como ocorrem a valorização contínua do capital, bem como suas irrupções e destrutividade (as crises e desvalorizações).

Na compreensão sobre as contradições internas do capitalismo, se tem a apreensão da ideia de que é pela via crescente da circulação das mercadorias, produzidas com base na exploração do trabalho vivo e na separação dos trabalhadores dos meios de produção (maquinário, matérias-primas, insumos de energia, do solo etc.), que se constitui, assim, o núcleo dessa acumulação. A separação entre os trabalhadores e os meios de produção, ambos existentes no mercado em quantidades excedentes, é um modo que representa a própria luta de classes específica no capitalismo entre aqueles que vendem sua força de trabalho como a única mercadoria para viver (os trabalhadores) e aqueles que compram a força de trabalho e renovam os meios de produção para obtenção dos direitos de propriedade relativos às mercadorias produzidas (possuidores de capital). Ao final da negociação das mercadorias, cabe aos compradores de força de trabalho reinvestir em salários, matérias-primas, tecnologias, propriedades privadas, investimentos em infraestruturas de circulação e nos demais custos de produção que lhes permitam acumular de modo crescente3.

A inovação tecnológica se expressa na acumulação de capital como necessária, estratégica e contraditória para os capitalistas. Necessária por possibilitar aumentar a produtividade do trabalho, aperfeiçoar a produção e acelerar a circulação de mercadorias até o consumo. Estratégica por expulsar trabalho vivo da produção, induzir o desemprego, controlar, desse modo, os salários e preparar uma reserva de trabalhadores flutuantes, isso além de fomentar a competição intercapitalista por novos mercados. Contraditória pelo fato de essa inovação se constituir expulsando ou diminuindo, exatamente, o trabalho vivo gerador de valor. Essa inovação tecnológica e a substituição dos trabalhadores por máquinas acelera a própria produção de crises periódicas de sobreacumulação, momento em que os excedentes de capital (na modalidade de finanças, bens de consumo e tecnologias) e de trabalho (homens, mulheres e crianças que vendem a força de trabalho para sobreviver) não podem mais ser absorvidos pelo mercado (HARVEY, 2005, p. 130-133). E por esse entendimento, "o fato de que há um excesso de capital, relativo às oportunidades de emprego desse capital, significa que houve uma superprodução de capital em estágio precedente e que os capitalistas estão investindo em excesso e subconsumindo o excedente" (HARVEY, 2005, p. 46). As crises, assim, geram momentos de desvalorização do capital (queda da taxa de lucros), se transformando em períodos de tensões sociais e provocando trágicas consequências, "na forma de falências, colapsos financeiros, desvalorização forçada de ativos fixos, inflação, concentração crescente de poder econômico e político, queda dos salários reais e desemprego" (HARVEY, 2005, p. 47). A crise é a síntese de um período em que a "produção pela produção" precisa renovar as "condições de acumulação". Em termos contrários, sobrevive-se no contexto da produtividade decrescente, do maquinário sem renovação e desvalorizado, do desemprego e do subemprego crônico, das impossibilidades de investimentos lucrativos e, assim, sem a criação de uma nova demanda de mercado de bens de consumo, de bens de capital e das próprias finanças.

O excedente de capital em quantidades sempre maiores torna-se, igualmente, tanto a base do capital vinculada ao mecanismo de "progresso infinito da acumulação", como a "base para os fenômenos que se mostram nas crises" (GRESPAN, 2012, p. 121). O excedente torna-se crise "quando nem todo valor a mais integra o novo capital" (GRESPAN, 2012, p. 121), quando o limite mais elevado da produção capitalista perde o sentido da valorização do valor e penetra a desvalorização do capital. O excesso de produção não ameaça apenas o indivíduo, mesmo que o desemprego, as falências, os estoques cheios, a queda dos preços, entre outros fenômenos, despertem para essa análise. O fenômeno da sobreacumulação ameaça a sobrevivência do próprio capital como totalidade formalmente estabelecida, ao mesmo tempo em que revela o efeito da potência de formulação e desmoronamento do mundo baseado no impulso da acumulação. "Como sujeito que tem em si próprio seu fim e forças para adequar suas formas de existência à realização dele, o capital é o ‘conteúdo fundado’, o interior a partir do qual se exteriorizam as determinações contraditórias, inclusive a crise" (GRESPAN, 2012, p. 121).

As saídas para o excedente de capital e da força de trabalho, como adverte Harvey baseado em Marx, são assim momentos de racionalizações arbitrárias sobre o desenvolvimento econômico capitalista. Faz-se necessário elaborar "um outro nível de demanda efetiva" que estaria na capacidade do capital penetrar em "novas esferas" da produção, produzir novas condições de circulação, criar "novos desejos e necessidades de consumo", equilibrar o crescimento da classe trabalhadora e expandir-se geograficamente "para novas regiões, incrementando o comércio exterior, exportando capital e, em geral, expandindo-se rumo à criação do que Marx denominou de mercado mundial" (HARVEY, 2005, p. 48). Na análise de Harvey, entretanto, Marx pouco se deteve sobre as transformações externas que seriam provocadas pelas contradições internas do capitalismo. Mesmo deixando claro que havia uma força violenta que se projetava no palco mundial provinda da irrupção e da autodestruição do capitalismo que recriariam as contradições em escalas mais amplas, estava ausente de Marx uma teoria geopolítica que revelasse as modalidades dos domínios territoriais e das expansões geográficas como medidas para a estabilização das contradições internas do capitalismo.

Exatamente nesse último item, vinculado às expansões espaciais, exportações de capital e criação do mercado mundial, é que Harvey despende trabalho intelectual para pensar como a natureza das contradições internas do capital, compreendida por Marx, abre as possibilidades para se elaborar uma teoria da geopolítica, que pense as consequências da continuidade da sociedade capitalista e das dinâmicas políticas de poderes entre os Estados nacionais em tempos de crise e "desvalorização selvagem" do capitalismo. Essa teoria busca entender como as intensificações do capitalismo nos próprios centros e sua expansão geográfica para territórios às margens das hegemonias fazem parte das tentativas de recuperação da valorização do valor e da sobrevivência de um modo de produção que carrega em si sua negação. Harvey, com efeito, busca em Marx e em outros interlocutores, como Hegel, Luxemburgo e Lenin, as bases para a elaboração de uma teoria que leve em conta os aspectos internos e externos do modo de produção capitalista. Com suporte nesses quatro teóricos, compõe seu "núcleo intelectual amplo" para mostrar os influxos da lógica que envolve a administração e a dominação do excedente de capital no mundo, especificando, entre as principais consequências analisadas, "a questão da organização espacial e da expansão geográfica como produto necessário para o processo de acumulação" (HARVEY, 2005, p. 48).

3 Núcleo teórico amplo da geopolítica do capitalismo

Em termos investigativos, antes mesmo de Marx, já havia observado Harvey (2005, p. 99-100) que Hegel (1770-1831) foi um dos primeiros a entender que os Estados modernos em formação se deparavam com a necessidade de pensar estratégias para a resolução dos problemas das contradições internas de uma sociedade civil-industrial. Em seu livro Princípios da Filosofia do Direito, Hegel (1997, p. 208) entendeu que esses problemas eram apresentados, por um lado, pela concentração de capital e o aumento da produção de riqueza e, por outro, pela crescente massa de miseráveis que se acumulavam, liberadas pelo uso das técnicas e da especialização do trabalho, ambos sem absorção no interior de um mesmo Estado. Hegel, citando o exemplo da Inglaterra, discordava da noção de que a resolução para essa contradição fosse resolvida pela manutenção de instituições pela classe rica, como hospitais, fundações etc., para os miseráveis sem trabalho. Examinava, no entanto, que a incorporação de mais trabalho na indústria resultaria na produção do excesso de produtos e não eliminaria a ampliação da pobreza, sendo esse "o mal que assim crescia duplamente" (HEGEL, 1997, p. 208).

Para Hegel, as contradições internas que surgem em uma sociedade civil, associadas à busca do lucro e ao trabalho como princípio de honra, não conseguem nem ser resolvidas pela sociedade civil nem pelo próprio mercado interno. Mesmo que seja sugerida a "cobrança de imposto dos mais ricos para favorecer aos pobres", ou mesmo, que fossem ofertadas "novas oportunidades de trabalho aos pobres", tudo isso só acentuaria o problema. "A criação de novos empregos aumentaria o volume de produção, quando a calamidade consiste precisamente no excesso de produção e na falta de um número proporcional de consumidores" (HARVEY, 2005, p. 100). As capacidades produtivas do mercado haviam criado um problema na dinâmica interna de uma sociedade madura em que ela mesma não resolveria, mesmo que coubesse à "classe rica" e aos representantes políticos encontrar saídas para a sobra de riqueza e o excesso de pobreza produzidos dentro da mesma unidade nacional (HARVEY, 2013, p. 524).

Hegel (1997, p. 209-210) compreende, assim, que a sociedade civil é impelida em ultrapasse a ela própria, "obrigada a procurar fora de si os consumidores e, portanto, os meios de subsistir, recorrendo a outros povos que lhe são inferiores nos recursos que ela possui em excesso, em geral na indústria". Essa busca colonialista também serviria como uma porta para os miseráveis acumulados no país industrial, tratada por G.W.F. Hegel (1997, p. 209-210) como uma possibilidade que permitiria "uma parte da população regressar, num novo território, ao princípio familiar e de, ao mesmo tempo, obter novas aplicações para o seu trabalho". Harvey (2013, p. 524) é contundente, ao dizer que Hegel foi o primeiro a propor as práticas expansionistas "como soluções necessárias para as contradições acumuladas que assediam qualquer sociedade civil madura". No panorama de instabilidade social, de conflitos acirrados entre as classes, de excesso de produção de riqueza e do inexpressivo consumo ante as capacidades de produção, a "sociedade civil é forçada a buscar uma transformação externa por meio da expansão geográfica" (HARVEY, 2013, p. 524).

O colonialismo era, consoante Hegel, um instrumento para resolver os problemas da sociedade civil com base no domínio territorial de outras partes do mundo. Tal proposta, no entanto, é mencionada por David Harvey como a única porta que fora aberta por G.W.F. Hegel que não foi fechada. Dizendo em outras palavras, o autor menciona que Hegel não apresenta um desenvolvimento desse argumento sobre como a relação entre o mercado mundial e a expansão geográfica poderia garantir estabilidade ao capitalismo. Para Harvey (2013, p. 524),

Hegel deixa em aberto a relação exata entre os processos de transformação interna e externa e falha em indicar se a sociedade civil pode ou não resolver permanentemente seus problemas internos mediante a expansão espacial.

Em consequência dessa falha, permanece um sentido de incompletude no argumento, "o fantasma de Hegel", que não permite se avaliar os limites e as barreiras das possibilidades de manutenção da acumulação com suporte no expansionismo geográfico pelos Estados modernos.

Harvey (2005) retorna sempre a Marx para buscar averiguar que respostas já foram dadas à porta aberta por G.W.F. Hegel. As preocupações passam por descobrir como essa geografia "fora de si" que o capitalismo precisa para sobreviver, apresentado por G.W.F. Hegel com apoio na proposta da colonização, é analisada na obra de Marx. Investigando o livro Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, obra escrita por Marx para virar de ponta cabeça a dialética de Hegel, Harvey assinala que o autor "ignora os trechos em que Hegel, de modo tão assombroso, descreve as contradições internas da sociedade e sua possível superação" por meio do colonialismo4. É possível, no entanto, apreender na obra de Harvey o uso recorrente, pelo menos, de dois momentos em que Marx trata do colonialismo: o primeiro, referente aos textos publicados por Marx, relacionado ao domínio britânico na Índia, e o segundo, alusivo ao último capítulo d’O Capital, sendo uma resposta de Marx à porta aberta por G.W.F. Hegel.

Desde os textos sobre a Índia, Harvey extrai a noção de que Marx compreendia que a penetração do capital britânico promoveria a destruição das bases econômicas da sociedade hindu, dissolvendo a propriedade comum, a divisão hereditária do trabalho e as tradições culturais associadas à agricultura, ao artesanato e à religião5. A extensão do território, a "abundância de produtos naturais" e a aptidão dos hindus para "adaptar-se a trabalhos totalmente novos" deveriam ser utilizadas futuramente para a produção agrícola destinada às fábricas inglesas, bem como para a elaboração e manejo dos projetos de implantação de máquinas no território. A colônia, com efeito, seria também um espaço para converter investimentos introduzidos em modernas forças produtivas, como ferrovias, servindo, tanto para acelerar a conexão entre os diversos pontos isolados das comunidades que precisavam continuamente de instruções, tropas e alimentos referentes às forças armadas, quanto para "baratear o transporte do algodão e de outras matérias-primas necessárias para as suas fábricas"6.

A criação de colônias, assim, não serviria apenas para o deslocamento do excesso de produtos e miseráveis, como pensava Hegel, mas acompanhava a destruição da própria sociedade original. Harvey (2013, p. 524-525) argumenta que, no capítulo final do primeiro volume do livro O capital, Marx forneceu uma resposta a Hegel e uma maneira de mostrar como as práticas de colonização "só podem suprir novos mercados e campos para a indústria à custa de recriar as relações capitalistas da propriedade privada e uma capacidade para se apropriar do trabalho excedente de outras pessoas". Para a produção capitalista avançar em colônias a "passos de gigante", como nos Estados Unidos, expressava Marx (2013, p. 844) que foi preciso deixar de ser "a terra prometida dos trabalhadores emigrantes". A base material do novo mundo "aniquilava a propriedade fundada no próprio trabalho", e a centralidade do capital no território criava os agentes financeiros, imobiliários, associados à apropriação privada das terras públicas e à especulação com as ferrovias e as minas, inerentes ao domínio supremo do capital sobre os trabalhadores (MARX, 2013, p. 844).

A tese central de Marx entendia que o assentamento das bases materiais do novo mundo recriaria as contradições semelhantes nos territórios antigamente colonizados. De efeito, a longo prazo, não haveria solução externa para as contradições internas do capitalismo, as taxas de lucros seriam alvos de queda a longo prazo, a solução para a crise não estaria resolvida e a acumulação cessaria seu funcionamento. Entende Harvey, todavia, que adiantar isso no final do século XIX foi um equívoco de Marx sobre o papel que as transformações espaciais teriam para a acumulação, já que o limite externo ao capital estaria distante de ocorrer, pela quantidade de possibilidades que o mundo apresentava para as expansões, ou mesmo pela força bruta que o próprio processo de acumulação criaria, ligado às crises, forçando as expansões de poder dos Estados, ou mesmo as guerras, as desigualdades espaciais e os conflitos geopolíticos. Nas palavras de Harvey (2013, p. 525),

[...] o limite externo a esse processo está no ponto em que toda pessoa em todo canto do mundo [estivesse] espremida dentro da órbita do capital. Até que esse limite seja alcançado, as resoluções externas para a resolução interna do capitalismo parecem inteiramente factíveis.

O que permanecia em aberto exigia uma resposta teórica que tratasse acerca de como a expansão geográfica poderia trazer uma solução efetiva para as crises e para os processos de desvalorização do capital a longo prazo. Assim, destaca na sua obra a importância de outros interlocutores que, na transição do século XIX até a Primeira Guerra Mundial, levaram em conta e buscaram produzir respostas sobre o papel que a produção dos excedentes de capital e a expansão geográfica teriam na sobrevivência do capital. Entre eles, Rosa Luxemburgo (1972, p. 74) torna-se uma das principais fontes metodológicas de Harvey, por tratar do expansionismo e do domínio territorial como necessidades inerentes a uma realidade em que o excesso de produção capitalista caminha como um "bêbado nas curvas", tendo a instabilidade de preços e as crises "uma única função na sociedade: integrar a produção privada caótica num contexto mais geral sem o qual a sociedade rapidamente se desintegraria".

Para Harvey (2005, p. 58), Luxemburgo foi a principal produtora da ideia de que "o espaço novo para a acumulação que o capitalismo tem de definir existe apenas sob a forma de sociedades pré-capitalistas, que proporcionam mercados virgens para a absorção do que é a tendência permanente à superprodução". Dessa maneira, na interpretação de Luxemburgo, faz-se necessário decompor a premissa teórica de Marx da divisão da sociedade em apenas duas classes (burguesia e proletariado), sendo essa alteração uma compreensão de que outros modos de produção coexistem organicamente com o modo de produção capitalista quer nos centros, quer nos territórios colonizados. Com efeito, as saídas para a sobrevivência da acumulação estaria na expansão para esses distintos territórios com outras relações sociais de produção, trocas comerciais e outras ordens políticas locais em que a "classe capitalista pode escoar o excedente de mercadorias para trocar a mais-valia em dinheiro e, assim, acumular capital" (LUXEMBURGO, 1972, p. 79).

Esse entendimento de Luxemburgo, após 30 anos das afirmações de Marx sobre a colonização, direciona Harvey para perceber como as sociedades pré-capitalistas, não sendo as mesmas nas margens dos centros e em outras regiões, produzem resistências distintas à penetração capitalista. Esse processo alargava a introdução da importância de movimentos anticapitalistas não proletários contra as práticas expansionistas que eram fundamentais para a sobrevivência do capitalismo. Harvey colhe, assim, o exercício intelectual de Luxemburgo como um caminho heurístico para se perceber a importância que a variedade geográfica, no interior dos continentes, teria para a lógica de expansão e incorporação do capitalismo. Em Luxemburgo (1972, p. 79), essa variedade geográfica é formada por distintos ritmos e modalidades de vida em variados modos de produção pré-capitalistas, como comunismo primitivo, feudal, camponês e artesanal, que ainda estariam, "em si, fora" da predominância do processo da acumulação ampliada de capital, quer dentro da Europa, dos Estados Unidos e, sobretudo, em outros territórios "onde a produção capitalista apenas lançou raízes".

Não só todos estes modos de produção coexistem, e coexistem localmente com o capitalismo, como se observa também um intenso comércio de tipo específico entre eles [...] Os países capitalistas mais avançados participam nesta caça a áreas de acumulação, quanto mais rara se tornam as zonas capitalistas ainda abertas à expansão do capital e mais se agudiza a concorrência; as suas incursões transformam-se numa cadeia de catástrofes econômicas e políticas: crises mundiais, guerras, revolução. (LUXEMBURGO, 1972, p. 79-81).

A busca por espaço novo diz respeito às compreensões teóricas sobre a participação do desenvolvimento geográfico desigual do globo a fim de pensar as saídas para a acumulação contínua e as crises do capital. De tal maneira, Luxemburgo fazia uma leitura mais paciente sobre a ideia de que não havia mais espaço a curto prazo para a expansão do capitalismo – como tornava a se compreender com amparo nas premissas de Marx –, propondo uma análise da acumulação de capital vinculado aos processos concretos e variações geográficas de cada território. "A acumulação de capital enquanto processo histórico", assinala Luxemburgo (1972, p. 83), "desenvolve-se no meio de várias formações pré-capitalistas, numa constante luta política e através de relações econômicas recíprocas". Os territórios abertos aos centros do capitalismo eram vistos, assim, como novas fronteiras de consumidores para o excedente da produção industrial e reservatórios para a renovação da própria acumulação desde a apropriação dos recursos naturais "sobre as ruínas de modos de produção de nativos" (LUXEMBURGO, 1972, p. 82).

Com arrimo em Rosa Luxemburgo, entendemos que Harvey mergulha na questão de método para pensar a geopolítica do capitalismo, tendo como princípio a compreensão da diversidade e desigualdade histórico-geográfica entre os territórios que conformam ou podem ainda ser incorporados nas dinâmicas do mercado mundial. Essa abertura das possibilidades de expansão como saída para o capitalismo segue outra premissa de Luxemburgo, que orienta a necessidade de superação da leitura do capitalismo em "estado puro", como sistemas com formatos sociais fechados. Esse processo não negaria a abstração das contradições internas do capitalismo como ponto de partida, entretanto propunha uma articulação com as situações concretas, isto é, com as formações econômicas e sociais particulares na realização da acumulação de capital, ou mesmo nas resistências aos processos de incorporação mais intenso dos territórios na dinâmica do mercado mundial.

As heranças desse exercício do pensamento reflexe a diversidade natural, política e social do globo, abrindo essa constatação um aspecto relevante da teoria geopolítica em constituição:

Para começar, o globo nunca foi um campo nivelado em que a acumulação capitalista pudesse jogar seu destino. Foi e continua a ser uma superfície intensamente variegada, ecológica, política, social e culturalmente diferenciada. Os fluxos de capital encontraram alguns terrenos mais fáceis de ocupar do que outros em diferentes fases de desenvolvimento. E no contato com o mercado capitalista mundial algumas formações sociais adaptaram-se para se inserir agressivamente nas formas capitalistas de troca de mercado, ao passo que outras não o fizeram, por uma gama de motivos, o que teve conseqüências supremamente importante (HARVEY, 2004, p. 51).

Harvey, no entanto, em todos os seus trabalhos aqui analisados, rejeita a tese do subconsumo, de Luxemburgo, como a principal atitude dos centros da acumulação de capital para solucionar as crises em longo prazo. E, assim, discorda da tese segundo a qual as sociedades pré-capitalistas serviriam apenas como terceiros mercados para o excedente de mercadorias dos centros. Primeiro, entende que a penetração e a destruição das sociedades pré-capitalistas dependeriam das resistências políticas-econômicas dessas sociedades e, ainda, de que tipo de conexão ou função tinham elas com os centros do capitalismo. Segundo, apreende que o capitalismo não se destruiria ao transformar os territórios pré-capitalistas incorporados em novos territórios capitalistas. Para Harvey, a variedade geográfica do globo continuaria, sobretudo, pelos territórios que concentram e controlam os excedentes de capital e aqueles que, mesmo independentes e capitalistas, participam, política e economicamente, subordinados na própria lógica da acumulação global. A tendência inata à superacumulação de capitais e, assim, de novas crises, exprimia que o próprio capitalismo fundava novas desigualdades entre os territórios como um dos seus aspectos externos (HARVEY, 2013, p. 545-549).

Ao refutar ambas as hipóteses de Luxemburgo, Harvey busca em Lenin uma proposição teórica que recupere a leitura das contradições internas e das crises, reveladas por Marx, articuladas à história da dinâmica geopolítica entre os Estados nacionais. A tese central de Lenin (2012, p. 89) afirma que existe uma concentração do excedente de capital financeiro nos países que predominavam a grande indústria, criando uma forte assimetria mundial entre os "Estados financeiramente poderosos em relação a todos os restantes". No limiar do século XX, demonstrava que a Inglaterra, a França, os Estados Unidos e a Alemanha possuíam 80% do capital financeiro mundial, além dos principais monopólios dos ramos industriais. Quase todos os restantes, os outros países, recém-independentes ou territórios diretamente colonizados, tinham dívidas públicas com um desses Estados, servindo esses territórios para a exportação de capital financeiro, com a finalidade de alargar os lucros dos bancos, abrir mercados para os produtos industrializados e preservar as assimetrias do poder econômico e político no espaço mundial.

Dessa maneira, Harvey incorpora, com suporte em Lenin, a ideia de que as principais modalidades de exportação de capital não se fecham às mercadorias, isto é, os centros selecionam os espaços dos quais têm o domínio ou que constituíram relações assimétricas para investir, sobretudo financeiramente, nos territórios em que os capitais são escassos, as terras são baratas, os custos com a força de trabalho e as matérias-primas são baixos. Se as crises "aumentam, por sua vez, em proporções enormes, a tendência para a concentração e para o monopólio", como atestou Lenin, com as falências e fusões das instituições financeiras e produtivas nos centros do capitalismo, as periferias, por sua vez, passaram a ter a função de evitar o processo de desvalorização dos capitais acumulados das empresas e dos Estados, traduzindo a disputa de absorção do excedente no exterior como os palcos de "lutas econômicas, políticas e militares entre os Estados-nações" (HARVEY, 2005, p. 125). O excedente de capital, revelado como base da superacumulação, mostra politicamente que, em períodos de crise, existe um lado canibal do capitalismo que aflora nos conflitos pelos territórios.

Em tempo de desvalorização selvagem, a busca de ajuste espacial se converte em rivalidades interimperialista, que sustentam o impacto da desvalorização. A exportação do desemprego, da inflação e da capacidade produtiva ociosa se tornam as fichas num jogo ameaçador. As guerras comerciais, o dumping, as tarifas e cotas, as restrições ao fluxo de capital e ao câmbio exterior, as guerras associadas às taxas de juros, as políticas de imigração, a conquista colonial, a subjugação e dominação de economias tributárias, a reorganização forçada da divisão internacional do trabalho nos impérios econômicos e, finalmente, a destruição física e a desvalorização forçada do capital de um país rival por meio da guerra, são algumas opções à mão. (HARVEY, 2005, p. 125).

Para Harvey, no entanto, Lenin introduziu as dimensões geográfica e espacial vinculadas à compreensão do excedente de capital, principalmente a exportação do capital após o aparecimento das primeiras grandes depressões, como as ocorridas de 1873 a 1900, processos que explicariam as mudanças no estágio do capitalismo, bem como a Primeira Guerra Mundial. Mesmo com uma porção de ajustes ad hoc, Lenin conseguiu afirmar que

o capitalismo passa por seu curso específico de desenvolvimento dependendo das condições nesse ou naquele território, e que a dinâmica fundamental do capitalismo força as principais potências capitalistas a lutas e confrontações geopolíticas (HARVEY, 2005, p. 125).

Tendo sido assim, Lenin também introduziu o conceito de Estado como expressão de poder sobre uma territorialidade, equivocando-se, inclusive, para Harvey, com questões de cunho nacional, tanto para pensar o capital como a organização da classe trabalhadora. Na perspectiva de Harvey (2005, p. 144), "Lenin deu expressão geográfica à dinâmica da acumulação de capital à custa de reabrir a questão histórica da relação entre sociedade civil e Estado".

4 A problemática espacial

A travessia de estudos sobre as obras de Hegel, Marx, Luxemburgo e Lenin fez, em nosso entendimento, Harvey estabelecer as suas bases teóricas da geopolítica do capitalismo como parte da crítica da economia política e, concomitantemente, compreender que a porta aberta por G.W.F. Hegel, há muitos anos, ainda não havia sido razoavelmente fechada. Nem Marx nem mesmo os marxistas haviam concluído como as transformações capitalistas das naturezas e das formas de vida nos territórios poderiam solucionar a superacumulação de capital que conforma as crises. Além de ajustes ad hoc, o problema-chave de Harvey está em constituir uma resposta que revele qual o papel da dominação territorial e da expansão geográfica para a formação e absorção do excedente de capital e, assim, para pensar as administrações das crises. Esse processo abre um poderoso enigma sobre a sobrevivência do capitalismo por meio da intensificação, com amparo na procura de espaços novos no interior dos territórios dos centros do capitalismo e, sobretudo, pela via da expansão, ao buscar soluções externas arrimadas nos acordos internacionais, de trocas desiguais ou de conflitos geopolíticos entre os Estados nacionais e as empresas nas margens do mundo.

O papel do imperialismo e do colonialismo, da expansão geográfica e da dominação territorial, na estabilização geral do capitalismo, não está resolvido na teoria marxiana. Na verdade, ele continua sendo objeto de intensa controvérsia e com frequência de debates amargos. Uma resposta abrangente e irrefutável ao problema que Hegel colocou tão claramente muitos anos atrás ainda tem de ser construída. Será que existe um "concerto espacial" para os problemas do capital? Se não existe, que papel desempenha a geografia nos processos de formação e resolução da crise? (HARVEY, 2013, p. 526).

Na leitura abrangente das obras de Marx e de teóricos marxistas do imperialismo, Harvey rastreia incompletudes, ou mesmo, uma ausência no que se refere à produção teórica da crítica da Economia Política vinculada à relação entre tempo e espaço7. Para o autor, a centralidade na dimensão temporal é tão nítida quanto a atitude desprezível sobre o espaço na análise da valorização do capital. Isso torna-se até compreensível, na medida que o capital se estabelece com base no controle de um conjunto de tempos, como do trabalho excedente no interior da fábrica, da mina, da agricultura moderna, até o tempo de transferência das mercadorias ao mercado consumidor. Ratifica Harvey (2005, p. 145), no entanto, que, como ponto de partida, todos os esforços para controlar o tempo e anular as distâncias físicas tão somente "podem ser alcançadas por meio da produção de configurações espaciais fixas e imóveis (sistemas de transporte etc.). Em segundo lugar, nos defrontamos com a contradição: a organização espacial é necessária para superar o espaço". Em outras palavras, "o mais-valor deve também ser produzido e realizado dentro de um determinado domínio geográfico" (HARVEY, 2013, p. 526).

Para Harvey, o tema do espaço e da geografia em Marx, quando não se trata do exemplo de algum ajuste ad hoc de um fenômeno histórico citado (localizado na Índia, Estados Unidos, Irlanda, Inglaterra etc.), é lido teoricamente apenas como distâncias e obstáculos temporais, uma barreira a ser superada, que encurte o processo de desvalorização da mercadoria entre a produção, a circulação e o consumo. Assim, o espaço pensado por Marx é relacionado como um objeto que precisa ser destruído para a acumulação contínua se ampliar, isto é, está vinculado ao tempo de desvalorização do capital, um empecilho para ser superado pelo desenvolvimento das forças produtivas, um freio que impede o aumento da produtividade do trabalho, a ampliação das necessidades, da diversidade da produção e, assim, da autovalorização do capital. Entre as fontes possíveis para tratar dessa abordagem que Marx (2011, p. 444-445) endereça para a relação entre o tempo e o espaço, torna-se necessário recortar uma passagem extensa do Grundrisse:

Quando falamos de velocidade da rotação do capital, presumimos que só detêm a passagem de uma fase à outra as barreiras externas, e não as barreiras resultantes do processo de produção e da própria circulação (como nas crises, superprodução etc.). Além do tempo de trabalho realizado no produto, o tempo de circulação do capital ingressa igualmente como momento da criação do valor – do próprio tempo de trabalho produtivo. Se o tempo de trabalho aparece como atividade ponente de valor, esse tempo de circulação do capital aparece como o tempo da desvalorização [...] Consequentemente, o tempo de circulação só determina o valor na medida em que aparece como barreira natural para a valorização do tempo de trabalho [...] O tempo de circulação aparece, portanto, como obstáculo da produtividade do trabalho = aumento do tempo de trabalho necessário = redução do tempo de trabalhos excedente = redução do valor excedente = freio, obstáculo do processo de autovalorização do capital. Assim, enquanto o capital, por um lado, tem de se empenhar para derrubar toda barreira local de intercâmbio, i.e., da troca, para conquistar toda a terra como seu mercado, por outro, empenha-se para destruir o espaço por meio do tempo; i.e., para reduzir a um mínimo de tempo que custa o movimento de um local a outro. Quanto mais desenvolvido o capital, quanto mais distendido, portanto, o mercado em que circula, tanto mais ele se empenha simultaneamente para uma maior expansão espacial do mercado e para uma maior destruição do espaço pelo tempo.

Dessa maneira, Marx entende que o capitalismo produz em seu íntimo a "tendência necessária para superar barreiras espaciais e anular o espaço pelo tempo" (HARVEY, 2005, p. 65). E, de modo claro, aponta que, desde a relação entre "transporte, localização e concentração geográfica", é possível encontrarmos algumas das suas condições genéricas sobre a extensão espacial e, do mesmo modo, o "elo perdido" entre a acumulação e o espaço na sua teoria. Marx aponta, no entanto, a necessidade apenas de expandir e intensificar geograficamente, não tratando exatamente "como, quando ou onde" (HARVEY, 2005, p. 66). Isto é, Marx não desenvolveu teoricamente como a produção do espaço, sobretudo, nos períodos de queda da taxa de lucros, assumiria parte da função de absorver o excedente de capital e atuaria como uma saída estabilizadora em tempos de crise. E, além dessa lacuna sobre o novo papel do espaço, não deu continuidade às análises dos processos baseados na acumulação primitiva interligados com a acumulação ampliada, não amadurecendo como "o capitalismo sempre precisa de um fundo de ativos ‘fora de si’ mesmo para enfrentar e contornar pressões de sobreacumulação" (HARVEY, 2011, p. 119).

Tal como refere Ricardo Musse (2014, p. 63), "a questão, no fundo, remete às relações entre economia e política, um dos muitos pontos que Marx apenas esboçou e não teve tempo de desenvolver em sua obra". A análise da produção do espaço em diversas escalas torna-se, desse modo, a peça empírica para as abstrações sobre o modo de produção capitalista de Marx. O "como, quando e onde" são três faces que revelam como o espaço que está sendo produzido está associado à produção de excedente de capital, quando essa produção ocorre particularmente no curso histórico do capitalismo e em que região da produção de excedente ou de escassez de capital do globo essa produção ocorre. Esse processo, para Harvey, a título do que é descrito por Musse (2014, p. 63), não está dissociado das instituições administrativas e dos discursos políticos produzidos no interior dos Estados nacionais, sendo preciso levar em consideração "a influência mediadora das estruturas políticas, ideológicas, militares e outras, que, embora devam ser organizadas de modo coerente em relação ao curso da acumulação de capital, não são determinadas unicamente por isso".

Consoante Harvey, o Estado aparece como um dos principais mediadores, servindo para administrar um conjunto de alianças internas de classes que têm "diversos interesses dentro de um território". O Estado, assim, serve para defender "os valores já materializados", a "acumulação adicional", intensificar os "fomentos" públicos para a produção do espaço pelos possuidores de capital, ou mesmo para assumir obras que os capitalistas não podem ou não querem assumir (como transportes, comunicações etc.) em períodos de estabilidade. O Estado é utilizado também para fortalecer os setores produtivos que estão "fixos" nos territórios, criando espaços novos para a acumulação de capital no interior de uma sociedade civil. O Estado ainda participa diretamente da produção ideológica, local, regional ou nacionalista, fomentando a produção de vários discursos sobre as necessidades das transformações materiais dos locais, das reestruturações dos espaços regionais, do desenvolvimento do território nacional, das atrações, ou mesmo dispersão do capital e do trabalho para outras regiões (HARVEY, 2013).

As relações espaciais e as estruturas geográficas são assim "o domínio do concreto e do específico" nos territórios, num dado "contexto das determinações universais e abstratas da teoria de Marx" (HARVEY, 2005, p. 145). Essa proposta implica entender que um conjunto de produções espaciais no interior dos Estados nacionais, sobretudo centralizadores do excedente de capital no mercado mundial, são realizadas como formas lucrativas e como medidas políticas para a estabilização da economia. Efetivamente, Harvey (2009, p. 10) insiste em dizer que, dentro das possibilidades para encontrar soluções rentáveis para a produção do excedente no interior dos centros da economia, "a urbanização proporciona um caminho para resolver o problema", como foram os casos de seus estudos sobre Paris, revelando a sobrevivência política de muitos chefes de Estado ligada à abertura para investimentos produtivos em programas e políticas territoriais para implantação de infraestruturas que permitissem resolver a questão do capital excedente e da força de trabalho desempregada em médio prazo com gastos produtivos (HARVEY, 2009; 2015).

Nas palavras de Carlos (2011, p. 98-99), para Harvey, a produção do espaço urbano, em escala ampla, constitui-se como momento do processo de valorização do capital em que "a cidade assume uma função econômica: a de ser fonte/receptáculo de investimentos (capital fixo) e geradora de lucro (força produtiva)". A depender do crédito, por exemplo, os bancos antecipam capitais para os Estados, para os proprietários de terra, empresários construtores, os capitalistas da produção, entre outros agentes que podem ser utilizados para ampliações da geografia da produção e da circulação com esteio na implantação de infraestruturas físicas e sociais nas escalas das cidades e das regiões no interior dos territórios (HARVEY, 2013, p. 530-531). O projeto de Harvey em "espacializar o marxismo", como chamou Vieillescazes (2008), faz as geografias urbanas produzidas se transformarem numa condição para mais expansão ou destruições criativas futuras, permitindo estender os limites da acumulação com apoio na reestruturação espacial, sendo essas paisagens imobilizadas uma face do domínio do espaço para a continuidade da absorção do excedente e circulação do capital8.

É por intermédio desse "comando" sobre a produção e o controle do espaço que Harvey pensa a urbanização como uma das faces da geopolítica do capitalismo. Em estudo realizado por Assis (2017), em específico sobre as experiências das intensificações dos investimentos de capital em Chicago, torna-se possível captar algumas variáveis para a investigação desse primeiro aspecto: o rastreamento e comparação dos investimentos nas cidades-sede da geopolítica do capitalismo em períodos de crescimento da taxa de lucros e das crises de sobreacumulação; as estatísticas vinculadas ao tecido urbano produzido nesses períodos; a disposição de crédito dos capitalistas monetários para as reformulações do espaço urbano; os gastos produtivos estatais em reestruturações do espaço urbano com esgotos, avenidas, habitações, transportes, estruturas para os serviços, comércios, hospitais, centros educacionais e militares; levantamento das diferenças dos preços das terras e especulações nos mercado de imóveis, em destaque, nos subúrbios das cidades; o levantamento dos agentes imobiliários e de demolições; trabalhadores envolvidos na produção da cidade; os movimentos de resistências às reestruturações e ampliação das geografias urbanas; os discursos espaciais produzidos pelo Estado ou empresas, como plantas urbanas, mapas, desenhos e fotografias9.

Harvey, no entanto, elabora uma teoria geopolítica com base na hipótese de que somente as intensificações dos investimentos de capital no interior dos Estados nacionais, quer com a urbanização, quer com as reestruturações territoriais, não seriam capazes de evitar o colapso da sobreacumulação nos territórios. Por essa ótica, o excedente de capital, drenado de vários pontos da superfície do Planeta para os centros do capitalismo, sabe que a única maneira de manter o poder dos Estados e das alianças de classe, principalmente em períodos de depressões, é buscando "uma solução externa para os problemas" (HARVEY, 2005, p. 153). Nesses termos, Harvey (2005, p. 62) afirma que "o capitalismo se destina a se expandir por meio tanto da intensificação dos relacionamentos nos centros capitalistas de produção, como de expansão geográfica desses relacionamentos no espaço". Para o último caso, o

Estado costuma ser empregado para garantir e promover arranjos institucionais internacionais e externos por meio dos quais as assimetrias das relações de troca possam funcionar em favor do poder hegemônico (HARVEY, 2011, p. 147).

Além do Estado, outras instituições "hierarquicamente aninhadas", como das finanças, com a hierarquia de moedas lastreadas entre os Estados; as "firmas multinacionais", com perspectivas de acumulações globais que precisam interagir com vários locais, e os "arranjos governamentais regionais, municipais e comunitários" tornam-se "poderosos mediadores entre a universalidade do dinheiro no mercado mundial e as particularidades de trabalhos concretos realizados" (HARVEY, 2004, p. 55). Para Harvey, os centros da geopolítica do capitalismo buscam nos Estados com fraca soberania política e poder econômico, em destaque na América Latina, na Ásia e na África, abrir espaços lucrativos para a absorção do capital; territórios capazes de imobilizar os empréstimos para reestruturações geográficas ao deslocar parcela da indústria, migrar a mão de obra excedente, investir na modernização das forças militares, acelerar as trocas comerciais, ou seja, conseguir abrir novas frentes com superlucros que não teriam apenas com os investimentos internos.

O novo aspecto que se mostra, na segunda face da teoria da geopolítica de Harvey, é um entendimento da crise como um processo de desvalorização que pode ser estabilizado com a expansão geográfica, isto é, na medida em que as instituições hierárquicas passam a entender que "o mercado externo é a fronteira-limite de expansão do capitalismo" (TEIXEIRA, 2014, p. 165). Esses capitais concentrados no interior das instituições financeiras, da produção de mais-valor e nos próprios Estados nos centros do capitalismo, são capazes de

[...] determinar onde vão surgir certos tipos de trabalhos concretos e relações de classe, podendo às vezes, até mesmo, ditar padrões de desenvolvimento geográfico desigual por meio do controle da reunião de capitais e fluxos de capitais (HARVEY, 2004, p. 55).

O que importa sempre para a análise, atesta o autor, é como o processo de incorporação desigual de novos lugares e regiões, como partes concretas da totalidade do mercado mundial, permite realizar uma nova leitura da formação e da resolução das depressões ligadas "às qualidades materiais do espaço social como estão definidas nas relações capitalistas de produção e troca" (HARVEY, 2013, p. 536).

A busca do capital pelas regiões certas no momento certo na história do capitalismo é uma maneira utilizada pelos seus possuidores para evitar o processo de desvalorização do seu próprio capital. Mesmo que o capital procure internamente modalidades lucrativas extrapolando as fronteiras ou criando frentes de absorção com a urbanização, "a desvalorização [só] é evitada por transformações externas sucessivas e ainda mais grandiosas" (HARVEY, 2013, p. 539). Para Harvey, os ritmos regionais diferentes na dinâmica mundial, mesmo que apresentem algumas regiões em crescimento e outras em declínio, fragmentam a unidade da leitura abstrata da crise e criam, pela interpretação do desenvolvimento geográfico, a compreensão de que um crash global, por exemplo, pode ser compensado e encontrar saídas mitigadoras com suporte nesse jogo desigual entre os espaços. Harvey (2013, p. 540) segue propondo que "a geografia do desenvolvimento desigual ajuda a converter as tendências à crise do capitalismo em configurações regionais mitigadoras da acumulação e desvalorização rápidas".

A saída para a absorção do excedente de capital, com base na reestruturação geográfica, requer um mundo aberto. Os fechamentos das fronteiras, na defesa da "inércia geográfica" com o estrangeiro, e das alianças políticas nas regiões são forçados a se abrirem nos períodos de sobreacumulação. "As alianças locais tendem a ser drasticamente reorganizadas", "as incorporações tecnológicas repentinamente alteradas", "as infraestruturas físicas e sociais totalmente reconstruídas" e "a economia de espaço da produção, distribuição e consumo capitalistas totalmente transformadas" (HARVEY, 2013, p. 541). Assim, a abertura de regiões alarga para o capital excedente novas zonas de investimentos lucrativos para o crédito, para sistemas de transportes e comunicações e, igualmente, para os avanços nas privatizações das fontes de matérias-primas e alimentos. Ainda existe a possibilidade de forjar novas regiões produtivas nas periferias, tornando-as capazes de estabelecer trocas mais volumosas e de servir como consumidora de produtos de alta tecnologia dos centros. Abrem-se, também, as possibilidades para investimentos e modernização das forças militares, integrando mais capitais ligados às tecnologias de segurança e da guerra.

Dessa maneira, algumas variáveis sobre a expansão geográfica, como o segundo aspecto da teoria da geopolítica do capitalismo, de David Harvey, podem ser destacadas10: levantamento e comparação dos dados da divisão territorial internacional do trabalho; estatísticas das balanças comerciais entre os países em períodos de crescimento e de crise; mapeamento dos acordos, das pautas, dos volumes e dos rendimentos da exportação e da importação entre os Estados; os agentes políticos e econômicos envolvidos nas trocas comerciais; a abertura de crédito para novas regiões para especulação de meios de produção ou para implantações de infraestruturas físicas e sociais; a conformação de novas especialidades produtivas nos territórios e da diversificação das pautas de exportações; a abertura de empréstimos para fortalecer e modernizar as forças militares; estatísticas das dívidas públicas entre os Estados e instituições; o número de trabalhadores ocupados; os movimentos de resistência às formações das novas regiões produtivas; e representações territoriais, produzidas por instituições públicas e privadas, que tratem dos recursos naturais, transformações territoriais, acordos sobre trocas comerciais, operações militares etc.11.

Como assinala Harvey (2005, p. 117), "o capital excedente pode ser emprestado para um país estrangeiro, criando novos recursos produtivos em novas regiões" que tanto servem para imobilizar o capital em investimentos de longa duração como também para abrir mercados de consumos produtivos e ofertas de alguns produtos que os centros têm maiores dificuldades. E ainda assinala:

[...] o único escape reside na aceleração contínua da criação de novos recursos produtivos. Disso, podemos deduzir um impulso dentro do capitalismo para criar o mercado mundial, para intensificar o volume de troca, para produzir novas necessidades e novos tipos de produtos, para implantar novos recursos produtivos em novas regiões, e para colocar a mão-de-obra, em todos os lugares, sob a dominação do capital (HARVEY, 2005, p. 117).

As reestruturações das geografias, com efeito, inseridas ou como espaços "fora de si" que podem ser incorporados, tornam-se a nova referência possível para excedentes sem absorção; constituem uma saída plausível que o capital tem encontrado para as crises, ampliando a configuração periódica do globo, sobretudo nos momentos em que as produções excedentes de mercadorias, tecnologias e finanças ultrapassam as condições de utilidade (HARVEY, 2013, p. 543). Mesmo que a expansão geográfica não possa "curar as contradições herdadas do capitalismo", o autor entende que

seus impactos podem ser disseminados e até certo ponto mitigados pelo deslocamento dos fluxos do capital e do trabalho entre setores e regiões ou por uma reconstrução radical das infraestruturas físicas e sociais (HARVEY, 2013, p. 544).

O excedente de capital, sem saídas lucrativas internas, utiliza-se das assimetrias entre os Estados nacionais para sua sobrevivência, avança politicamente as fronteiras para desenvolver as forças produtivas e novas relações sociais, a fim de reestabelecer um "concerto" para os problemas objetivos da desvalorização.

Essa interpretação geográfica de Harvey sobre as crises, como assinala Musse, estabeleceu uma renovação do materialismo histórico. Compôs, segundo o autor, uma "interpretação original da teoria marxiana" e sua "obra ultrapassou a condição de mera geografia do capital", consistindo sua preocupação primordial em "buscar respostas para os desafios impostos ao marxismo pela crise econômica" (MUSSE, 2014, p. 57). Nos estudos das crises, Harvey compreendeu que as assimetrias entre os Estados nacionais produzem, além das distintas modalidades de concentração do excedente de capital, atitudes políticas, diplomáticas, embates ideológicos e até intervenções militares como parte das estratégias, tanto para absorver o excedente de capital quanto para produzir um conjunto de novos ativos produtivos. A resolução dos excedentes, ao mesmo tempo em que produz a "desvalorização de ativos e a destruição de regiões configura uma nova paisagem espaço-temporal para acomodar a perpétua acumulação de capital e, sua companheira inseparável, a acumulação interminável de poder" (HARVEY, 2013, p. 64).

A tese dos investimentos lucrativos requer uma transformação das geografias dos Estados que são centro da geopolítica do capitalismo e, concomitantemente, da formação de novas regiões produtivas ordenadas pelas dinâmicas da produção, da circulação e do consumo de excedentes de capital. Sem a possibilidade de comandar e produzir espaço, o capital entraria em profundo processo de desvalorização e caos, com inflações, superlotação dos estoques e queda dos preços, ociosidade de infraestruturas físicas, subutilização e paralisação da tecnologia de produção e circulação, além das altas taxas de desemprego, subemprego, tensões sociais e a exportação da desvalorização com apoio em conflitos bélicos. Mesmo, porém, utilizando-se do recurso da produção do espaço para protelar a crise e sustentar a acumulação, arremata Harvey (2005, p. 144): "o resultado final [...] é que as crises se tornam mais globais em escopo, enquanto os conflitos geopolíticos se tornam parte dos processos de formação e solução da crise".

Nossa tarefa é elaborar uma teoria geral das relações espaciais e do desenvolvimento geográfico sob o capitalismo, que possa, entre outras coisas, explicar a importância e a evolução das funções do Estado (locais, regionais, nacionais e supranacionais), do desenvolvimento geográfico desigual, das desigualdades inter-regionais, do imperialismo, do progresso e das formas de urbanização etc. Apenas desse modo podemos entender como as configurações territoriais e as alianças de classes são formadas e reformadas; como os territórios perdem ou ganham poder econômico, político e militar; quais são os limites externos à autonomia interna do Estado; ou como o poder do Estado, depois de constituído, pode, em si, tornar-se uma barreira para a acumulação livre de capital ou um centro estratégico em que pode ser travada a luta de classes ou as lutas interimperialistas. (HARVEY, 2005, p. 144).

Para Harvey (2005, p. 118), "a construção de uma crise verdadeiramente global do capitalismo depende do esgotamento das possibilidades para novas transformações revolucionárias ao longo do curso do capitalismo". Em outras palavras, a problemática central do autor é a de que "a acumulação de capital sempre foi uma questão profundamente geográfica" e, enquanto houver possibilidades de reconfiguração da geopolítica da acumulação de capital no globo, nem que seja com base na destruição das formas de vidas tradicionais ou da demolição de paisagens geográficas construídas por meio da guerra, o capitalismo utiliza-se das suas forças destrutivas para refazer as hierarquias e renascer dessas cinzas. Defende, assim, Harvey (2004, p. 40) o ponto de vista conforme o qual "sem as possibilidades inerentes à expansão geográfica, à reorganização espacial e ao desenvolvimento geográfico desigual, o capitalismo há muito teria cessado de funcionar como sistema econômico-político".

5 Considerações finais

A geopolítica do capitalismo é o estudo da expressão geográfica das contradições internas do capital, "registrado de modo mais marcante como uma hiperacumulação do capital numa área geográfica específica, associada com uma inserção desigual dos diferentes territórios e das formações sociais no mercado mundial capitalista" (HARVEY, 2004, p. 40). Implica, pois, compreender os jogos geopolíticos de poder entre os Estados nacionais e os possuidores de capital como processos que, além de interligarem espaços distintos, utilizam-se das reorganizações e das reestruturações dos lugares, das regiões e dos territórios nacionais como parte das estratégias para ampliação da acumulação e sobrevivência do capitalismo em suas crises. Cabe ao investigador entender como cada território se posiciona e participa do mercado mundial, e ainda como as propriedades do espaço evidenciam, num instante específico, a formação, a ampliação, a combinação ou mesmo a destruição das paisagens geográficas como "aspectos vitais" de uma época do capitalismo.

A geopolítica do capitalismo não nega que existem outras conformações de apropriação do território e relações de produção que não se integram à dinâmica do crescimento da taxa de lucro (trabalhos familiares, trocas no mercado interno e vínculos às tradições). Entende, todavia, que a efetivação da vida cotidiana que conhecemos se dissolverá no caos, caso o esgotamento das capacidades de absorção interna e externa do excedente de capital seja confirmado. As crises profundas solapam os períodos de estabilidades constituídos entre os Estados nacionais, as coerências estruturadas dos territórios ficam desordenadas, as alianças regionais de classe tendem a se fraturar, as integrações do mercado mundial desaceleram, as "portas abertas" da economia são surpreendidas pelas ações protecionistas, as trocas comerciais e o pagamento das dívidas públicas ficam impedidos, travando os fluxos dos excedentes de capital e de trabalho. Todos esses processos afloram das forças destrutivas do capitalismo para autopreservação, tendo como resultado uma nova força institucional ou brutal para a reconfiguração geopolítica do globo.

O excedente de capital em desvalorização traz consigo conflitos geopolíticos entre os Estados-nações e uma nova rodada da intensificação e da expansão geográfica. As novas redivisões do globo podem surgir com guerras, partilhas do planeta e novas ordens diplomáticas, ou mesmo com descolonizações e integrações de Estados modernos impotentes no mercado mundial. No interior dos centros do capitalismo, as guerras, em grande parte, destroem as infraestruturas urbanas e agrárias que logo precisarão ser reconstruídas, e, ainda mais, os países mais avançados demonstram na superioridade militar que também podem se servir dessa máquina como um grande negócio a posteriori para os outros Estados. O avanço sobre as periferias do mundo torna-se o método mais novo para cada período, com antigas práticas de expropriação dos meios de produção até a abertura de fronteiras de modernização dos territórios, buscando saídas lucrativas para os excedentes de capital financeiro e industrial. Cabe aos centros reconstruir os próprios centros e redefinir as clivagens geopolíticas nas alianças com as periferias, recriando as desigualdades geográficas em âmbito regional e mundial no interior do próprio capitalismo.

Referências

ASSIS, Raimundo Jucier Sousa de. A iminência da subordinação aos Estados Unidos: a afirmação do Brasil como periferia do capitalismo na exposição universal de Chicago. Tese (Doutorado em Geografia Humana) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017.

CARLOS, Ana Fani Alessandri. A condição espacial. São Paulo: Contexto, 2011.

FARIAS, Hélio Caetano. Território, poder e riqueza. Revista Continentes, n. 7, p. 36-63, jul. 2015.

FIORI, José Luís. História, estratégias e desenvolvimento: para uma geopolítica do capitalismo. São Paulo: Boitempo, 2014.

GRESPAN, Jorge. O negativo do capital: o conceito de crise na crítica da Marx á à Economia Política. 2. ed. São Paulo: Expressão Popular, 2012.

HARVEY, David. Espaços de esperança. Tradução de Adail Ubirajara Sobral e Maria Stela Gonçalves. São Paulo: Edições Loyola, 2004.

HARVEY, David. A liberdade da cidade. Tradução de Anselmo Alfredo, Tatiana Schor e Cássio Arruda Boechat. Geousp – Espaço e Tempo, n. 26, 2009.

HARVEY, David. A produção capitalista do espaço. Tradução de Carlos Szlak. São Paulo: Annablume, 2005.

HARVEY, David. Espacios del capital: hacia una geografia crítica. Traducción Cristina Piña Aldao. Madrid: Akal, 2007.

HARVEY, David. O novo imperialismo. 5. ed. Tradução de Adail Ubirajara Sobral e Maria Stela Gonçalves. São Paulo: Loyola, 2011.

HARVEY, David. Os limites do capital. Tradução de Magda Lopes. São Paulo: Boitempo, 2013.

HARVEY, David. Paris: capital da modernidade. Tradução de Magda Lopes. São Paulo: Boitempo, 2015.

HEGEL, George Wilhelm Friedrich. Princípios da Filosofia do Direito. Tradução de Orlando Vitorino. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

LENIN, Vladimir Ilyich. Imperialismo: estágio superior do capitalismo. Revisão da tradução: Miguel Makoto Yoshiba. São Paulo: Expressão Popular, 2012

LUXEMBURGO, Rosa. A acumulação de capital: uma anticrítica. In: LUXEMBURGO, Rosa; BUKHARINE, Nikolai. Imperialismo e acumulação de capital. Tradução de Inês Silva Duarte. Lisboa: Edições 70, 1972.

MARX, Karl. O domínio britânico na Índia. In: MARX, Karl. Obras Escolhidas. v. I. São Paulo: Alfa-Ômega, [18--?]. p. 286-291.

MARX, Karl. Futuros resultados dos domínios britânicos na Índia. In: Obras Escolhidas. v. I. São Paulo: Alfa-Ômega, [18--?]. p. 292-297.

MARX, K. O capital: crítica da economia política. v. 1. Tradução Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2013.

MUSSE, Ricardo. David Harvey: para além de uma geografia do capital. Revista de Sociologia & Antropologia. Rio de Janeiro, v. 4, p. 55-69, jun. 2014.

TEIXEIRA, Francisco. Os limites do capital de David Harvey: para a reconstrução da teoria marxiana das crises. São Paulo: Crítica marxista, n. 39, 2014, p. 163-172.

VALENÇA, Márcio Moraes, Cidades ingovernáveis? Ensaio sobre o pensamento harveyneano acerca da urbanização do capital. In: SILVA, José Borzacchiello da; LIMA, Luiz Cruz; ELIAS, Denise (org.). Panorama da Geografia brasileira I. São Paulo: Annablume, 2006. p. 185-190.

VIEILLESCAZES, Nicolas. Spatialiser le marxisme, marxiser la géographie: le materialisme historico-géographique de David Harvey. In: HARVEY, David. Geographie de la domination. Paris: Les Pairies Ordinaires, 2008.


* Professor do Curso de Graduação em Geografia e do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal do Piauí (UFPI). Doutor em Geografia Humana pelo Programa de Pós-Graduação em Geografia Humana da Universidade de São Paulo (USP, 2012/2017).

1 No Brasil, esses textos encontram-se na tradução reduzida da coleção Geografia e Adjacências, coordenada por Antonio Carlos Robert Moraes. Ver Harvey (2005).

2 Em entrevista cedida a New Left Review, em agosto de 2000, Harvey relata que começou a ler O Capital num grupo de estudos, em 1971, com os estudantes. "O grupo de leitura foi uma experiência maravilhosa, mas eu não estava em condições de ensinar a ninguém. Enquanto grupo, éramos um cego conduzindo outro cego". Mesmo após escrever seu primeiro livro, em 1973, claramente, com base em formulações marxistas, Harvey (2005, p. 22; 24-25) admitiu que, após o Justiça Social e a Cidade, percebia "que não entendera Marx e precisava corrigir isso", comentando que fez esse mergulho sem relação alguma com corporações intelectuais, ou outro orientador, conduzindo o processo entre o grupo de estudos e por conta própria.

3 Essa síntese pode ser encontrada em diversos textos de Harvey (2005, p. 130-133), em destaque, nos dez pontos que o autor seleciona para interpretar as principais características do modo de produção em Marx.

4 E acrescenta: "Muito surpreendente, portanto, é a total falta de qualquer comentário sobre a concepção de Hegel a respeito da ‘dialética interna’ da sociedade civil, que a leva a buscar soluções coloniais ou imperialistas" (HARVEY, 2005, p. 110-111).

5 Ver: "O domínio britânico na Índia" (MARX, [18--?], p. 286-291).

6 Ver: "Futuros resultados dos domínios britânicos na Índia" (MARX, [18--?], p. 295).

7 Por exemplo, ver Harvey (2011, p. 133; 2004, p. 30-31 e p. 40).

8 Para esse debate também pode ser consultado o texto de Valença (2006, p. 185-190).

9 Ver Assis (2017). Em destaque o tópico, "a exposição universal de Chicago numa centralidade urbana da nova potência" (ASSIS, 2017, p. 146-155).

10 Variáveis que também serviram para a investigação de Assis (2017, p. 37-111). Em destaque, consultar o capítulo "As exposições universais na expansão geográfica do mercado mundial".

11 Esse último ponto, em específico, refere-se ao debate sobre a produção de conhecimentos geográficos essenciais para a acumulação de capital e é pouco trabalhado pelos estudiosos de Harvey. Ver Harvey (2011, p. 226).

Apontamentos

  • Não há apontamentos.


ISSN 2317-3254